AJURMOC- ASSOCIAÇÃO DE LETRAS JURÍDICAS DE MONTES CLAROS/MG
DOUTRINAS
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E A FORMAÇÃO DO LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO ENTRE OS ENTES FEDERADOS, EM CASOS DE MEDICAMENTOS E PROCEDIMENTOS NÃO COBERTOS PELO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
24 de maio de 2021 - 22:00 hs
VITOR LUÍS DE ALMEIDA¹

 

 

O termo saúde, segundo reminiscências históricas, foi utilizado desde tempos remotos, pelos pensadores da Grécia antiga. Não obstante, foi a partir do ano de 1946, com a constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que a definição do termo foi ampliada, deixando de consistir apenas na ausência de doenças ou enfermidades, para caracterizar um estado de completo bem-estar, abrangendo os âmbitos físico, mental e social do ser humano. Ainda segundo a OMS, a saúde constitui um direito fundamental do homem, sendo os governos responsáveis pela adoção de medidas sanitárias e sociais adequadas à garantia da saúde de seus povos.

No Brasil, o tema saúde foi tratado pelas constituições pretéritas apenas no sentido administrativo, no intuito de estabelecerem medidas organizacionais, sobretudo no combate a doenças endêmicas e epidêmicas. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a “Constituição Cidadã”, a saúde passou a ser tratada como direito fundamental do ser humano, sendo dever do Estado o estabelecimento de prestações positivas no sentido de garantir a sua efetividade.

Dentro da temática da realização do direito à saúde e de sua garantia por parte do Poder Judiciário, no âmbito do que se tem designado como “judicialização da saúde”, assume pontual relevância a questão relativa à solidariedade dos entes federados (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) em responderem judicialmente pelos pleitos referentes às prestações positivas da Administração Pública, na garantia do direito à saúde dos cidadãos.

Ainda nos idos do ano de 2011, quando já chegara ao Poder Judiciário a primeira grande onda de ações envolvendo a judicialização da saúde, defendi a solidariedade passiva dos entes federados em artigo intitulado “Aspectos polêmicos da judicialização da saúde”, publicado na Revista Amagis Jurídica, n.º seis. A análise doutrinária realizada àquele tempo ensejava a inexistência de litisconsórcio passivo necessário entre os entes federados, nas ações sobre o tema, uma vez que, existindo a solidariedade, decorrente da aplicação de princípios constitucionais e, em especial das normas dispostas nos artigos 2.º; 23, inciso II; e 198, da “Magna Carta” do Estado brasileiro, qualquer dos referidos entes poderia responder individualmente pela prestação à saúde judicialmente postulada.

Tal tese se mostrou dominante por vários anos, tanto na doutrina como na jurisprudência pátrias, sendo, entretanto, constantemente revisitada, especialmente pelos Tribunais, o que acabou por ensejar uma alteração do posicionamento antes predominante. 

Mesmo que as normas constitucionais acima citadas, ou aquelas dispostas na Lei n.º Lei 8.080/90 não tenham sofrido alterações desde a existência do posicionamento primevo dominante acima ressaltado, a evolução da sociedade e, consequentemente, da jurisprudência da Corte Constitucional brasileira, mostrou uma efetiva modulação com relação ao tema tratado.

Com base nas referidas normas constitucionais, observa-se que a obrigação de todos os entes da federação em garantir o acesso à saúde é comum e única, sendo, neste ponto, solidária. Nesse ínterim, a atribuição concorrente, em regime de colaboração de todos os entes da Federação para a garantia do direito à saúde foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 855.178-RG/SE (Tema 793 da Repercussão Geral), de relatoria do Ministro Luiz Fux, que, inicialmente, manteve a tese da responsabilidade solidária dos entes federativos frente aos alegados óbices administrativos ou orçamentários da Administração Pública.

Contudo, o fornecimento das prestações positivas à saúde, realizado pela União, Estados e Municípios, é prestado por meio de uma rede de atendimentos, que pressupõe colaboração e organização. Não existe, portanto, superposição entre a obrigação de cada um dos entes. De tal modo, a hierarquização dos entes obedece ao grau de complexidade do fornecimento do tratamento médico.

Nesse ínterim, importa observar que o excelso Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na Suspensão de Tutela Provisória 127 - São Paulo, em decisão monocrática da lavra do Ministro Dias Toffoli, decidiu que

 

[...] a Constituição em seu arcabouço normativo de definição de responsabilidades em matéria de saúde pública, externou duas ordens de atribuições com preponderância de atuação: (i) responsabilidade por executar ações e serviços de saúde, preponderantemente atribuída ao Município (art. 198, I, c/c art. 30, VII), para que o atendimento se dê, preferencialmente, na própria região de residência do cidadão, com assunção de obrigações de atendimentos mais complexos pelos Estados e em sequência pela União; (ii) responsabilidade pelo comando técnico e pelo financiamento do Sistema acentuadamente atribuída à União e, em menor grau, aos Estados e Municípios, em ordem descendente.

 

 

Desta maneira, forçoso reconhecer que a Constituição Federal, ao cuidar da obrigação dos entes estatais ao fornecimento de saúde, não previu uma obrigação indivisível, mas, sim, uma obrigação estruturada em graus executórios correspondentes às atribuições próprias de cada um de seus entes, a qual é reiterada, inclusive, pelos artigos 16, inciso XV; 17, incisos I, III e VIII; e 18, incisos I e V, da Lei 8.080/90.

Inexorável, por conseguinte, que o Judiciário também observe esta lógica de distribuição de atribuições entre os entes estatais a fim de que não ocorra sobreposição de competências ou obrigação de um ente em fornecer tratamento ou medicamento que, em razão da repartição interna de competências, deve ser fornecido por outro.

Registre-se que, não obstante à tese da solidariedade entre os entes federados, inicialmente defendida, não se pode desconsiderar que em se tratando de medicamentos e/ou tratamentos não padronizados, a competência administrativa para a adoção da devida providência apta à tutela do direito do cidadão, no sentido da promoção ou da preservação de sua saúde, seria inerente à União, sendo este o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal. Afinal, quando do julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário 855.178, expôs o Ministro Edson Fachin (redator p/ o Acórdão) que

 

[...] v) Se a pretensão veicular pedido de tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas (em todas as suas hipóteses), a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (art. 19-Q, Lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação; [...].

 

 

Importante salientar, ainda, recente posição do Supremo Tribunal Federal em reafirmar a necessidade de inclusão da União no polo passivo da demanda, quando o objeto da ação se refere ao pleito de medicamentos/tratamentos não disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde, em complementação ao já decido no referido Tema de Repercussão Geral n.º 793. Nesse sentido, a decisão no Recurso Extraordinário - RE 1307921 / PR – PARANÁ, Relatora Min. Cármen Lúcia, julgamento em 19/03/2021, analisou de forma efetiva a evolução do posicionamento do “Excelso Pretório” sobre o tema, valendo ressaltar que apesar do reconhecimento da responsabilidade solidária imposta constitucionalmente aos entes federativos, “cabe ao Poder Judiciário direcionar o cumprimento da obrigação conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”. Por consequência, decidiu-se que

 

[...] é a União quem determina, via Ministério da Saúde, a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos a serem fornecidos à população. E, revendo entendimento anterior, entendo que cabe à União ressarcir o custeio financeiro na presente situação, pelo que deve ser incluída no polo passivo da ação como litisconsorte passiva necessária, com a posterior remessa dos autos à Justiça Federal. [...].

 

 

Como bem expressado nas decisões acima referidas, em revisão a posicionamentos doutrinários e judicantes pretéritos (inclusive pessoais), conclui-se que, de acordo com o atual posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, tratando-se de ação na qual a pretensão seja o fornecimento de medicamentos ou tratamentos que, apesar de autorizados pela ANVISA, não são contemplados pelo Sistema Único de Saúde, estar-se-á diante de um nítido caso de litisconsórcio passivo necessário que, a teor do disposto no art. 114, do Código de Processo Civil, exige a inclusão da União no polo passivo da ação judicial. Consequentemente, resta definida a competência da Justiça Federal para apreciação de tais ações, a teor do disposto no art. 109, I, da Constituição da República Federativa do Brasil.



[1] Juiz de Direito do Estado de Minas Gerais; Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra; Mestre em Direito pela Universidade de Lisboa.